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Neste artigo, falamos sobre como a gente precisa se aprofundar na história da alfabetização e do letramento no Brasil para criar estratégias de aprendizagem para o presente e o futuro. Este é mais um artigo de uma série de textos que elaborei no meu doutorado na Johns Hopkins University. Aproveite a leitura!

Pontos principais
Pais: conhecendo a história do ensino de leitura e escrita podemos conversar melhor com as professoras sobre o aprendizado de nossos filhos.
Gestores: milhões de estudantes brasileiros abandonam as escolas ou não estudam pois dizem que as aulas são “desinteressantes”. Entender como chegamos na educação atual pode nos ajudar a traçar estratégias didáticas mais atrativas, cativando os alunos.
Professores: a escola deve compreender quais os fatores têm maior influência sobre a motivação e o engajamento dos estudantes e das famílias e, assim, trabalhar para diminuir a evasão.

Desafios da educação no Brasil

A educação básica do Brasil está em uma situação complicada. A maioria das crianças não aprende o mínimo desejável, colocando o país entre os de menor desempenho em avaliações internacionais [1]. Além disso, a taxa de evasão escolar é de 25%, a terceira maior do mundo. Milhões de estudantes abandonam nossas escolas todos os anos reclamando de que a educação fornecida é desinteressante [3].

De acordo com avaliações nacionais [2]:

  • 66% dos alunos terminam o 9º ano sem aprender o mínimo necessário em portugês;
  • 85% dos alunos terminam  o 9º ano sem aprender o mínimo esperado em matemática.

Esse problema se estende até o ensino superior, onde estimativas indicam que 50% dos estudantes são analfabetos funcionais [4].

Sem aprender a ler e escrever bem desde cedo, uma criança jamais irá dominar as outras áreas do conhecimento. Por isso, precisamos nos aprofundar sobre os desafios da alfabetização no Brasil. Esta análise histórica busca determinar os fatos e processos que nos levaram a esse baixo aproveitamento dos alunos no ensino fundamental e no ensino médio.

Uma breve história sobre a alfabetização no Brasil

Os primeiros registros sobre a educação brasileira datam de 1554, a época dos jesuítas e do período colonial. Em 1759, quando os padres foram expulsos do país, suas escolas tinham matriculado menos de 0,1% da população [5]. As primeiras tentativas de organizar a educação do país começaram em 1876 e coincidiram com os movimentos pela formação da República. Esse período foi marcado pela implementação dos primeiros métodos de ensino de leitura, com base em abordagens sintéticas como o método alfabético [6].

A segunda fase da alfabetização no Brasil começou em São Paulo depois de 1890, com professores que defendiam a importância da pedagogia (o “como” se ensina) e dos métodos analíticos. Essa visão moderna gerou uma disputa acirrada entre esse grupo e os adeptos das abordagens mais tradicionais (sintéticas) [6]. O termo “alfabetização” foi criado mas o foco permaneceu em ensinar os alunos a ler, a escrita ainda estava muito ligada à caligrafia [6].

A terceira fase da alfabetização começou por volta de 1920, quando os professores começaram a rejeitar abertamente os métodos analíticos que se tornaram obrigatórios na segunda fase [6]. Foi nesse período em que nasceram os métodos mistos e os testes ABC para medir o desempenho dos alunos [7].

No entanto, uma das mudanças mais fortes foi que a pedagogia ficou cada vez mais dependente dos aspectos psicológicos (“para quem ensinamos”). Esse embate entre os diferentes métodos, a mistura entre “antigo e novo” e a sensação de fragilidade são questões importantes que podem ter influência nos níveis atuais de desempenho dos alunos.

Com início em 1980, a quarta fase da alfabetização brasileira foi marcada por mudanças sociais e políticas que resultaram na restauração da democracia [6]. Nesse período, surgiu o construtivismo, um paradigma muito diferente da tradição behaviorista.

A desvantagem da difusão da perspectiva construtiva foi que ainda não havia um método de ensino-aprendizagem estruturado A ausência de um método estruturado ainda está presente em nossas escolas [8] e deve ser um dos fatores que causa o baixo desempenho dos estudantes de hoje.

Na década de 1990, o sistema educacional brasileiro cresceu e se tornou cada vez mais universalizado. A intenção era permitir que o Brasil fosse competitivo em um contexto globalizado e digital.

O acesso à escola em todos os níveis de educação aumentou consideravelmente, e o país pôde dizer com orgulho que quase todas as crianças já estavam na escola. Apesar de termos conseguido matricular praticamente todas elas, passamos a notar que não estavam aprendendo o suficiente. Essa conjuntura é bastante parecida com a situação atual de nossas escolas [5].

Leia mais

Artigo: Desenvolvimento cognitivo, Vygotsky e o aprendizado na alfabetização.

A formação de professores(as) brasileiros(as) e a alfabetização

Para entender a realidade dos educadores, é preciso ter uma visão geral de como o país trabalhou para fornecer uma formação para esses profissionais desde a primeira escola para professores, fundada em 1684 [9]. Num certo momento, essa formação foi “dividida” em duas visões.

De um lado, um modelo mais conteudista, que dá preferência à bagagem cultural do(a) futuro educador(a) e aos conhecimentos específicos da disciplina que escolheu (português, matemática, ciências, etc). De outro lado existe um modelo pedagógico, que valoriza as estratégias de ensino em si. As universidades brasileiras, no decorrer da história, focaram mais no conteúdo e deixaram em segundo plano o “como ensinar”.

Uma abordagem interessante que pode ser utilizada para unir o conteúdo e as abordagens pedagógicas na formação superior dos professores pode tomar como ponto de partida os materiais didáticos usados ​​nas escolas [10].

Os materiais didáticos, como os livros didáticos tradicionais e as novas tecnologias que estão sendo difundidas nas escolas, podem ser aliados à formação docente. Analisando os aspectos pedagógicos desses textos, os(as) graduandos(as) poderiam relembrar o que já haviam aprendido nas outras disciplinas da graduação (o conteúdo) e, ao mesmo tempo, discutir formas de aplicar diferentes estratégias pedagógicas no dia-a-dia enquanto professores(as).

Livros didáticos para alfabetização

Analisando a evolução dos livros didáticos voltados ao ensino de leitura para crianças, podemos aprender muito sobre a situação atual de nossas escolas. A partir de 1890 surgiram as cartilhas, que foram cada vez mais utilizadas e logo se tornaram fundamentais para a disseminação dos diferentes métodos de ensino propostos no decorrer do tempo [11].

As cartilhas também serviram para moldar o conteúdo que deveria ser ensinado e, no final, estabeleceram conceitos importantes sobre aprendizado de leitura e escrita, cujos objetivos e utilidades passaram a fazer parte das escolas [11]. Análises dos livros didáticos mais recentes indicam que eles ainda apresentam algumas das características das cartilhas originais [11].

Esse é um ponto importante para a alfabetização: se os livros didáticos são um componente-chave do arsenal de ferramentas dos professores, eles podem ser uma das causas ou parte da solução dos baixos índices no aprendizado de leitura e escrita nas escolas brasileiras.

A evolução dos métodos de alfabetização

Diferentes propostas pedagógicas para o ensino de leitura e escrita foram introduzidas ao longo das décadas [12]. Em cada época, diferentes grupos surgem com suas próprias visões sociais e políticas, cada um deles oferecendo uma versão do que seria a solução perfeita para o problema do baixo desempenho das escolas brasileiras.

Quando um grupo assim surge, ele geralmente defende um método de ensino revolucionário, baseado nas “mais recentes descobertas científicas”. Conceitos como “antigos” e “tradicionais” passam a ser usados para atacar as propostas anteriores, que são colocadas como frágeis em relação aos novos métodos – esses sim inovadores e cheios de vantagens.

Definindo alfabetização e letramento

A palavra “letramento” foi introduzida por volta de 1980 no Brasil, na França (illettrisme) e em Portugal (literacia) para definir práticas sociais de leitura e escrita que decorrem do processo de aprendizagem da leitura e escrita [8].

Letramento é “um estado ou condição que um grupo social ou um indivíduo adquire como consequência de ter dominado a escrita e suas práticas sociais” [13] (p. 4). Esse termo contrasta fortemente com alfabetização, que significa ter aprendido a ler e a escrever.

Resumindo, letrado é alguém que aprendeu a ler e escrever (alfabetizado) e usa essas habilidades para se envolver em atividades que o integram à sociedade. Isso inclui ler diversos tipos de textos, desde notícias simples a romances complexos, escrever bilhetes simples, uma carta, um ensaio ou até mesmo uma dissertação.

O construto letramento é interessante para se analisar o problema do baixo nível de aprendizado de leitura e escrita nas escolas brasileiras. As pesquisas no Brasil podem estar dizendo que uma certa parcela da população não é alfabetizada, mas na realidade avaliando se essas pessoas são letradas. Assim, precisamos definir qual é o objetivo real das nossas escolas. Queremos alfabetizar? Alfabetizar e letrar?

Outro aspecto importante é que, com a revolução digital (ex: smartphones, apps e mídias sociais), o uso da linguagem escrita está aumentando dramaticamente para as classes de renda mais baixa. Isso é importante porque permite que elas leiam e participem mais das  práticas letradas, mas traz alguns desafios – principalmente em relação às suas imagens pessoais e profissionais, quando cometem erros de compreensão e grafia.

Aparentemente, o objetivo do sistema educacional brasileiro deve ser ensinar aos alunos a ler e escrever (alfabetização) e garantir que façam o uso social dessas habilidades (letramento). É necessário trabalharmos para que estas duas habilidades sejam atingidas por todos os estudantes.

Referências

[1] OECD. (2012). Programme For International Student Assessment (PISA). Retrieved from http://www.oecd.org/education/PISA-2012-results-brazil.pdf

[2] Qedu. (2015). Aprendizado dos alunos: Brasil. Retrieved from http://goo.gl/R6BX3w

[3] Neri, M. (2009). Motivos da evasão escolar. Brasília: Fundação Getulio Vargas.

[4] Globo. (2012, November 26). DFTV 2ª Edição. Brasília, DF: Rede Globo. Retrieved from http://goo.gl/8n6ACD

[5] Marcílio, M. L. (2005). História da escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo / Instituto Fernand Braudel.

[6] Mortatti, M. D. R. L. (2006). História dos métodos de alfabetização no Brasil. Portal Mec Seminário Alfabetização e Letramento Em Debate.

[7] Monarcha, C. (2008). “Testes ABC”: origem e desenvolvimento. Boletim-Academia Paulista de Psicologia, 28, 7-17.

[8] Soares, M. (2004). Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, 25, 5-17.

[9] Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, 14, 61-88. Retrieved from: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n14/n14a05

[10] Saviani, D. (2009). Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista brasileira de Educação, 40, 143.

[11] Mortatti, M. D. R. L. (2000). Cartilha de alfabetização e cultura escolar: um pacto secular. Caderno Cedes, 52, 41-54.

[12] Mortatti, M. D. R. L. (2009). A “querela dos métodos” de alfabetização no Brasil: contribuições para metodizar o debate. Acolhendo a alfabetização nos países de língua portuguesa, 3, 91-114.

[13] Soares, M. (1998). O que é letramento e alfabetização. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica.