Em fevereiro, os Estados Unidos celebraram o Mês da História Negra, e nas escolas do país são realizadas diversas atividades que valorizam a história e cultura negra, lembrando de líderes, fatos e resistência. No estado de Minnesota, especificamente na capital, Minneapolis, o grupo WNET desenvolveu um jogo virtual que tinha a intenção de “celebrar o mês da história negra e ir além dele” como uma dessas atividades de valorização nas escolas públicas do estado.
O jogo, chamado “Mission US: Flight to Freedom”, apresenta o formato role play, onde o jogador assume a identidade de um personagem em primeira pessoa – a personagem em questão é Lucy, uma escrava de 14 anos, que no jogo tenta fugir do norte para escapar da escravidão. “Flight to Freedom” então simula para as crianças do ensino fundamental as “experiências” de como era a escravidão em 1848.
Durante a sua missão, Lucy, descrita como uma “Nigress” (termo racista usado pelos senhores de escravos no período da escravidão nos Estados Unidos), enfrenta várias decisões e se depara com violência, humilhação e crueldade. Um exemplo é quando ela enfrenta perguntas acusatórias do capataz Mr. Otis, que diz à ela que gosta de “neguinhos quietos”. Além disso, no desenrolar da história, frases como “Dê uma palavra ou vou lhe açoitar” também são ditas pelos personagens brancos. Ao fim do jogo, Lucy é vendida por US$800,00 num leilão de escravos.
A educadora Rafranz Davis, que escreve em um blog de tecnologia educacional, repudiou totalmente o jogo por limitar a história negra à escravidão. Por que submeter crianças, sobretudo crianças negras, à uma “simulação” das atrocidades que aconteciam neste período? Por que lembrar dos negros falando logo da escravidão, um dos mais horrendos momentos da história, quando existem tantos outros fatos menos falados sobre resistência na história negra?
Muitos pais concordaram com a educadora, ainda que alguns sites americanos que fazem resenhas de jogos tenham descrito o game como “divertido”. Após a postagem no blog de Rafranz, a associação Black Advocates for Education (algo cuja tradução livre poderia ser “Defensores da cultura negra pela Educação”) no Minessota identificou que em uma escola de Minneapolis, famílias haviam reclamado do jogo após seus filhos serem submetidos a jogar.
Com vários posts no Facebook repudiando “Flight to Freedom”, a Associação de Escolas Públicas de Minneapolis (MPS) resolveu responder oficialmente às críticas, alegando que o game não era parte do currículo de estudos sociais do distrito, mas estava sendo apresentado às crianças pois alguns professores achavam apropriado.
Logo em seguida, de acordo com o jornal MinnPost, a mesma associação notou que o jogo foi fundado com o dinheiro de uma instituição chamada National Endowment of Humanities, que doa quantias para projetos que tratem de temas sociais e humanos, e também recebeu apoio da Corporação para Radiofusão Pública do Estado. Por ter sido apoiado por um número significativo de organizações acadêmicas, a MPS reconheceu que o estado tinha responsabilidade no jogo, e que a “polêmica” seria um assunto à ser discutido e o jogo revisto por eles de forma apropriada junto com o Departamento de Estudos Sociais.
Os criadores do “Flight for Freedom” se defenderam alegando que muitos acadêmicos contribuiram para o jogo e que ele seria uma forma efetiva de ensinar as crianças sobre tópicos sensíveis como direitos humanos, guerra baseada no terror, imigração e crises ambientais – e que pretendem transformar a patente numa série de jogos históricos, com temas como a Revolução Americana e a imigração russa em Nova York.
Um contexto a ser levado em consideração é que o ensino da história negra nas escolas dos Estados Unidos é bastante problemático: 96% do corpo discente americano é branco e não tem sensibilidade para lidar com o tema, o que torna bastante comum que as crianças negras saibam mais sobre racismo e suas histórias em casa e ouvindo e vivendo experiências do que em sala de aula. Muitos desses professores têm medo de errar no que dizem e confiam em jogos ou livros sem problematizar a história.
Américo é doutor em educação pela Johns Hopkins University. Pesquisador em educação, fundou a Escribo onde trabalha com as escolas para fortalecer o aprendizado das crianças.
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