Já se sabe que a educação brasileira é um grande desafio. Nós temos um país grande, rico e diverso, embora pouco disso tenha se refletido em nossa educação. O que vemos são problemas de infraestrutura, valorização insuficiente dos professores e uma falta de ação efetiva por parte dos governantes.
O caminho para mudar esse cenário é a criação de espaços de diálogo entre a população e os representantes políticos, para que possamos decidir em conjunto as prioridades e quais caminhos seguir. Infelizmente, não é assim que algumas autoridades pensam.
Sem discussão com a sociedade, sem levar em conta as pesquisas da área, saindo da inercia (típica do legislativo brasileiro em questões polêmicas) para a ação unilateral, o Deputado Alceu Moreira propôs um projeto de lei que pode jogar a educação brasileira, do estado precário em que se encontra, de volta à Idade de Pedra.
Antes de tudo, que projeto de lei é esse?
Que a tecnologia se tornou algo universal não é mais novidade. Cada vez mais ela é parte de nossas vidas. A chegada da tecnologia na sala de aula e sua influência no aprendizado como um todo, portanto, não é uma surpresa.
Todos os anos, milhares de pesquisadores pelo mundo fazem estudos detalhados para nos ajudar a entender como melhor integrar a tecnologia à sala de aula, facilitando a vida dos professores e o aprendizado dos alunos.
Ignorando evidências sólidas e os estudos realizados nos centros de referência, um deputado quer aprovar uma lei que proíbe aparelhos eletrônicos portáteis na sala de aula. Simples assim.
O projeto de lei proposto pelo deputado Alceu Moreira é uma atualização de um projeto mais antigo, proposto em 2007 (PL 2246/07). Este sugeria a proibição de telefones celulares na sala de aula, enquanto que o novo expandiu a proibição para qualquer eletrônico portátil (o que inclui tablets).
Ao invés de abrir um espaço para debates, convidar a população e os estudiosos da área para conversar, o deputado simplesmente sugere tornar crime o uso de tecnologia na sala de aula. O que é uma ótima forma de andarmos para trás em termos de desenvolvimento, para a “idade da pedra”, num setor tão frágil quanto a Educação no Brasil.
Art. 1º Fica proibido o uso de aparelhos eletrônicos portáteis nas salas de aula dos estabelecimentos de educação básica e superior.
O texto já foi aprovado pela Comissão de Educação e Cultura, mas ainda está pendente para análise em outras duas comissões antes de ir à votação.
Parágrafo único. Serão admitidos, nas salas de aula de estabelecimentos de educação básica e superior, aparelhos eletrônicos portáteis, desde que inseridos no desenvolvimento de atividades didático pedagógicas e devidamente autorizados pelos docentes ou corpo gestor.
Um ponto que pode ter chamado sua atenção é o trecho final do parágrafo único acima, o qual abre uma exceção no caso de aulas planejadas.
“Então, o projeto só fala da proibição de aparelhos fora do plano pedagógico. Se a escola decidir implantar um projeto com tablets, por exemplo, ela pode. O que há de errado nisso?”
O verdadeiro problema com a lei que proíbe tablets e celulares em salas de aula
O PL 104/15 justifica que a falta de atenção do aluno nas aulas é decorrente do uso indiscriminado de aparelhos eletrônicos, por isso deve-se proibi-los.
Parece bem simples, certo? Se os alunos estão distraídos, então vamos proibir a fonte de distração.
O problema é que a educação não é um campo simples e direto assim; é complexa e cheia de nuances. Existem diversos fatores que distraem os alunos e a tecnologia, ao contrário do que afirma o ilustre deputado, já foi identificada em estudos como fator de engajamento dos alunos.
Sabe-se que é preciso uma melhor gerência da tecnologia na sala de aula, mas a simples proibição através de uma lei é o melhor caminho?
Pode ser que esse ambiente proibitivo deixe os estudantes e professores desconfortáveis, o que causará um impacto negativo na motivação e no aprendizado. Outra possibilidade, bastante provável, é afastarmos ainda mais os jovens de nossas escolas, aumentando a evasão escolar, que no Brasil gira em torno de 25% – terceira taxa mais alta do mundo de acordo com dados do PNUD.
O risco é alto e os benefícios não estão tão claros para que se justifique tomar uma decisão tão drástica como prega tal projeto de lei. O deputado em questão saberia disso se tivesse consultado especialistas qualificados na área ou se tivesse aberto um debate a respeito.
1. Celular na sala de aula pode dar cadeia?
Aqui fica claro como há um uso desproporcional de força legal para resolver um desafio pedagógico. Já imaginou se, cada vez que um estudante quebrasse uma regra na sala de aula, fosse preciso chamar a polícia militar para levar o aluno para a delegacia?
Não faz o menor sentido propor uma lei se não há forma prática de se coibir quem a desobedece. Aliás, isso pode ser um indício (como é, nesse caso) que a legislação foi feita sobre um assunto que deveria ser tratado de outra maneira.
2. E a autoridade do professor?
O professor, como mediador entre o estudante e a aprendizagem, sempre deteve a autoridade para utilizar os recursos didáticos necessários para sua aula. O docente procura formas de melhorar a aprendizagem e de manter os alunos atentos e interessados. Será que uma “proibição vinda de cima” vai realmente ajudar o professor em sua tarefa de ensinar?
O que algumas pessoas não percebem é que o projeto de lei “inofensivo” e “bem intencionado” abre um precedente perigoso na educação: que todo problema na sala de aula seja resolvido por uma legislação, sem debate com as partes envolvidas.
Como professor, gestor, diretor, ou mesmo aluno, você consegue imaginar como seria uma sala de aula com quase tudo regido por leis federais?
A resposta está no cultivo de boas práticas, não em leis
Tecnologias, até mesmo pela definição da palavra, são ferramentas à disposição de quem as utiliza. Não há nenhum valor intrínseco positivo ou negativo na ferramenta em si, apenas na forma como é utilizada.
O mesmo raciocínio se aplica às tecnologias educacionais.
Inúmeros estudos são feitos todos anos demonstrando correlações positivas entre uso da tecnologia e melhor aprendizado. Se a internet, os tablets, os computadores, os aplicativos forem usados para estimular a imaginação dos estudantes e amparar o trabalho do professor, com objetivos claros, podem ter impactos positivos não apenas nas notas, mas no desenvolvimento de habilidades e no engajamento dos estudantes.
As novas tecnologias e abordagens pedagógicas estão também transformando o papel do professor em sala de aula. O mais recente relatório do NMC (New Media Consortium), mostra tendências tecnológicas que devem se difundir na educação básica com mudanças na atuação docente. O professor não será substituído, mas sim será elemento fundamental para mediar, ensinar os estudantes a aprender, a relacionar conteúdos pedagógicos com o mundo real, a pesquisar além da internet.
“Uma das imagens mais caricaturescas difundidas da tecnologia na educação representa um computador que substitui o docente, oferecendo automaticamente a informação aos estudantes. Mas isso tem levado a resultados pobres, particularmente quando a ênfase dos currículos já não está apenas nos conhecimentos, mas também nas competências”, diz Francesc Pedró, representante da Unesco para educação.
Não é uma questão de “ou professores, ou aparelhos eletrônicos” na sala de aula; mas sim de “professores e aparelhos eletrônicos” para facilitar o papel do professor e melhorar o aprendizado dos estudantes.
O Brasil não pode remar contra a maré educacional
A UNESCO acredita que as Tecnologias de Informação e Comunicação podem contribuir com o acesso universal da educação, a equidade na educação, a qualidade de ensino e aprendizagem, o desenvolvimento profissional de professores, bem como melhorar a gestão, a governança e a administração educacional ao fornecer a mistura certa e organizada de políticas, tecnologias e capacidades.
Portanto, o uso de tecnologias é uma estratégia que permite que o aluno aplique na prática o que aprendeu de maneira a conectar os conteúdos curriculares com o mundo real, auxiliado pelo professor. Não podemos deixar todo esse potencial de lado para apoiar, por mais “bem intencionada” que seja, um projeto que tenta regulamentar o uso de tecnologias através de proibição legal. O precedente negativo que isso criaria é desastroso.
Causar mudanças significativas na educação brasileira é um desafio e tanto. Não vamos tirar da mesa a tecnologia, uma de nossas aliadas mais fortes nesse projeto.
Por isso, é importante que você compartilhe esta notícia, especialmente com amigos de profissão, para que não deixe que este projeto absurdo jogue nossas crianças no passado!
Américo é doutor em educação pela Johns Hopkins University. Pesquisador em educação, fundou a Escribo onde trabalha com as escolas para fortalecer o aprendizado das crianças.
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